Costumo queixar-me do trabalho que é desgastante. Quem atende público sabe que não é fácil, há de tudo um pouco e por vezes torna-se difícil gerir os diversos tipos de personalidades. Mas nem tudo é mau no reino dos subterrâneos, se a grande maioria apresenta um feitio difícil, no meio deles também vão aparecendo aqueles que nos deixam com um sorriso nos lábios e recordações engraçadas e simpáticas, pela simplicidade dos seus pequenos gestos.
Há uns tempos, apareceu-me um cliente ucraniano enorme daqueles que metem respeito só de olhar . “Sénhora, precisa trocar passe, patrão mudou local de trabalho”. Pensei para com os meus botões «isto não vai correr bem». Apresentei-lhe a nova politica das empresas de transportes, em que as trocas foram abolidas em prol das anulações, com cobrança de uma taxa diária de utilização. Pediu para lhe fazer as contas do dinheiro a receber, o que eu fiz enquanto lhe lançava o mais simpático dos meus sorrisos e dizia umas larachas. Resumindo, ia fazendo o papel da palmadinha antes da injecção, para que esta não fosse tão dolorosa. Finalmente, quando o computador me deu o resultado final, eu transmiti-lho um pouco constrangida com a miséria do total a reembolsar e com a certeza que o sr. iria passar-se e cuspir-me num olho. Quando acabei de falar fiquei a observá-lo na expectativa da reacção com que iria brindar-me. Ele ficou a olhar para mim com aquele olhar alheado e pensativo de quem está a fazer contas de cabeça, eu sustive a respiração e esperei a bomba do costume «O quê? Estão a querer roubar-me...». Mas os segundos passavam e ele nada, até que de repente os olhitos ganharam um brilho de vida, a boca rasgou-se num sorriso e ele debitou: «Com esse dinheiro posso beber dez cérvejas».
Desatei a rir, realmente uma situação pode ser boa ou má consoante o ângulo de observação. Expirei finalmente com alívio, todo o ar que tinha estado a reter e brinquei: “«Beba só nove e deixe a outra para mim, também eu estou necessitada de uma cerveja». Os olhos deles abriram-se numa expressão de espanto e questionou-me: «Você gosta de cérveja?» ao que eu respondi descontraidamente «Claro que gosto». Continuamos a conversar, ele assinou os papéis da anulação, eu entreguei-lhe o dinheiro e quando se levantou para sair disse-me «Você foi muito simpática, eu vou trazer cérveja p’ra você». Aí, foi a minha vez da reacção de espanto, expliquei-lhe que estava a brincar, que não queria cerveja nenhuma e mais, que é expressamente proibido beber no local de trabalho, ainda podia ser despedida. Ele riu e despediu-se com um grande «obrigado sénhora».
Eu continuei o meu trabalho e esqueci o Anatoly, era este o seu nome, mas por pouco tempo. Passados uns minutos ele volta a entrar gabinete adentro com um sorriso malandro estampado no rosto e entrega-me o mais discretamente possível, com um olhar cúmplice, aquilo que se via nitidamente ser uma garrafa dentro de um saco de papel pardo (gato escondido, com o rabo de fora), eu fiquei encavacada a olhar para ele e balbuciei a meia voz «eu disse que era brincadeira, não valia a pena». Ao que ele respondeu «E eu disse que trazia, vá aceita depressa p’ra ninguém ver» e eu lá agarrei na garrafa atabalhoadamente e escondi debaixo da secretária, perante o olhar divertido da cliente que estava sentada à minha frente. E o grande Anatoly, que tem um tamanho proporcional à simpatia, virou costas e saiu com um ar satisfeito, deixando-me também a mim com um sorriso nos lábios.
Foi um pequeno gesto, mas que encerrava dentro de si algo muito maior, pela sua simplicidade e desprendimento.
Um grande bem haja, para todos os Anatolys deste mundo.
Adorei o texto de hj...saber das gentilezas e das delicadezas que ainda existem e resistem... E, bem sei o que é atender e trabalhar com publico, tenho duas atividades assim!
ResponderEliminarUm bom fim de semana, com cerveja!
Uma grande liçâo a reter! ;)
ResponderEliminarSubterrâneos da alma chamado ao Roupa Prática! ;)
Belladona, selo no meu blog.
ResponderEliminarBeijinhos.
ohhh fiquei deliciada com essa história!! Grande Anatoly...
ResponderEliminarAinda não tinha lido...Homem maravilhoso,assim vale a pena...
ResponderEliminarBem-haja aos Anatolys.
ResponderEliminarBeijinho Bella
bem querido o homem...é na simplicidade dos gestos que a vida passa menos pesada(e cá estou eu com filosofias)
ResponderEliminarGostei ;)
Grande Anatoly...não gosto lá muito de cerveja, mas assim até ficaria a gostar :)
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