sábado, 4 de junho de 2011

Aparência acima de tudo

Entram os dois em tom de discussão. Ela revelando um rosto envelhecido, espelho dos reveses da vida, pele de pergaminho escurecido e enrugado. Ele deixando transparecer um ar ligeiramente mais jovem por detrás de uma barba comprida e cerrada e de uns óculos enormes de lentes grossas.
Em comum o cheiro a suor retardado, misturado com um odor de cama onde os lençóis não são mudados há três meses e, a roupa desactualizada despropositadamente quente num dia que imitava o verão no seu melhor. No geral, o aspecto de quem vive por aí algures sem grandes recursos.

Acho que Eisnstein dizia que ao contrário da luz, o pensamento anda à velocidade de uma carroça puxada por um burro, eu discordo. O espaço entre a porta e a secretária que nos separava é limitado por uns cinco passos, logo um espaço temporal de segundos. No entanto, nesse curto espaço de tempo, o meu cérebro congeminou várias teorias para tão excêntrico par. Primeiro tomei-os como um casal. Logo de seguida… talvez vizinhos  que se ajudam perante uma contrariedade. Finalmente em detrimento dos últimos dois, a opção de amigos da vida que se amparam num problema que atinge um deles e, imediatamente a seguir vi-me novamente na casa de partida, quando ouvi o macho da dupla vociferar em tom de quem não admite réplicas «Senta-te e cala-te que quem explica a situação aqui sou eu» e ela senta-se com um ar amuado, mas resignado. Ainda tive tempo de varrer o pensamento com um “não há dúvidas de quem é o homem da casa” e passar o espanador no “a querida deve levar no focinho” antes do “suposto garanhão” começar a expor o problema que os levou até à minha pessoa.
A senhora tinha sofrido um furto de esticão, no qual a mala sumira com todo o seu conteúdo. Precisava de fazer um novo passe, mas todos se recusavam a receber o pedido sem um documento de identificação. O que segundo o meu interveniente até era compreensível, não fosse a vida estar tão cara e difícil, para pagar diariamente bilhetes nos diversos transportes públicos.
Voltei a analisá-los “com os olhos… e o nariz inevitavelmente” e resolvi ajudar com uma confirmação de dados feita através de uma ficha de cliente já existente. Para que a vida, que já me parecia ser-lhes suficiente difícil, não se tornasse ainda mais.

Entretanto reparo na data de nascimento da senhora e até rejubilei. Contas rápidas de cabeça e resultado: Setenta anos, idade mais do que legitima para passe 3ª idade a metade do preço, iria fazer a boa acção do dia. Pensava eu, porque entretanto tudo desmoronou.
Eu simpática: Peço desculpa, mas que idade tem a senhora?

Ela: Setenta, porquê? Está a ver aí no computador que eu sou velha? Eu sei que sou velha!

Eu, estupefacta mas igualmente simpática: Apenas reparei que a senhora tem direito a passe 3ª idade, que custa metade do preço e resolvi informá-la, porque há clientes que não se apercebem desta vantagem.

Ela: Eu estou muito bem informada. É aquele da risca a meio da senha não é? Aquele que diz a toda a gente que somos velhos! Não, obrigada.
Ele: Oh. Filha, mas a senhora disse que é metade do preço, é de aproveitar.

Ela: Tu cala-te já. Quando tu tiveres idade para tirares o passe terceira idade, talvez eu considere também essa opção, até lá não há passes terceira idade para ninguém, estás a perceber? Não preciso cá de um bocado de papel a atestar que eu sou velha, era o que mais faltava.
Ele resigna-se à sua insignificância e eu à minha. Terminei o meu trabalho atestando a veracidade da identificação civil da senhora perante terceiros e, voltei mais uma vez à casa de partida. Aproveitando para atestar perante mim própria que nem tudo é o que parece. Primeiro, não confiar nas primeiras impressões e segundo, gaja que é gaja pode aniquilar o homem da casa na mesma fracção de segundos em que aniquila a verdadeira idade.

Então vejamos. Pobre? Sim senhor. Fedorenta? Ok.  Sem dinheiro para comer? Na pas de problem. Com aquele ar mumificado de quem acabou de desembarcar de um qualquer sarcófago de um século qualquer antes de Cristo? What´s the problem? Importante mesmo é manter a fachada. Velha, pobre e mal cheirosa… mas tudo isso com muito estilo.

E novamente, durante aqueles cinco passos que separam a secretária da porta ou vice-versa e, que demoram meros segundos a percorrer, me passou pela mente dizer-lhe uma destas pérolas que acabaram por me ficar entaladas no goto: « Sabe!? tomou a decisão correcta, é que sem dúvida, qualquer colega da fiscalização perante um passe 3ª idade apresentado por alguém tão jovial e simpático como a senhora, acreditaria estar perante uma falsificação. Desta forma acaba por poupar imensos mal entendidos» ou, aquilo que gostaria mesmo de lhe dizer: “ Vê se te enxergas pá, ninguém precisa de um passe para atestar a tua idade quando tem as tuas tombas à frente, certo!?”

Moral da história: Cada um alimenta-se daquilo que quer… E há sempre alguém disposto a alimentar-se apenas de aparência!

...

8 comentários:

  1. OMG...........que tristeza de gente.....queria eu um passe por metade do preço

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  2. Pobreza sim... mas acima de tudo pobreza de espírito!

    xoxo
    Lux

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  3. Infelizmente há muitas maneiras de esconder uma série de coisas que não queremos que saibam acerca de nós. No fundo, acho que é um preconceito da sr.ª a funcionar contra ela mesma...!

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  4. Vc escreveu de uma forma que vi o casal, a cena, tudo, tudo...muito bom! E um texto com final para reflexão!
    Não esqueci do livro, logo, logo, chegará ai!
    Bj*

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  5. Bella Querida
    Infelizmente ainda temos muitas pessoas assim, penso que quem vive para as aparências, não vive apenas se enganam a elas próprias.
    Beijinho

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  6. O que eu mais gostei no teu texto, foi reconhecer uma mente ágil e criativa na hora de criar histórias ;) Ou melhor, nos segundos!! Adoro a tua escrita :))
    Quanto ao resto, nada de novo ou que a malta não saiba ;) Só figurões ;)

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  7. Credo...não consigo perceber, juro que não...

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  8. E depois há os velhos MUITO ricos que fazem tudo para ter um desconto de 5 cêntimos no que quer que seja.

    Deixa lá, é porque ela não precisava mesmo ou então muito mais pobre de espirito de facto.

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